Pirinéus Unplugged
1ª parte (dias 11 a 13 de Julho)
Para quem já tem feito aventuras além fronteiras, com tiradas de longo curso e banhos de assento até ao destino, já conhece o relato. Para os outros, peço desculpa não me alongar, mas de facto contar a história da rotina do começo de uma caminhada iniciada ainda de madrugada, até me dá sono. Ironicamente, é também nesse exacto momento em que saímos de casa, com a mochila ainda bem arrumadinha e as botas dependuradas na mão que se sente que a aventura já começou.
A última noite de sono dormida como “gente normal” já era e nem demos por ela. O último banho com todas as letras e rituais já passou. E já agora a lâmina de barbear também ficou na gaveta – em último recurso, numa acção desesperada (se houver) recorre-se a métodos mais ortodoxos. O conforto não tem espaço na bagagem que já vai pesada e nos deixa um nó da garganta só de pensar como é que vão ser 8 dias a caminhar com aquilo às costas. Logo se verá e Deus é grande.
Bom, entre fotos de tipos adormecidos e excitação de quem parece estar a caminhar pela primeira vez, demo-nos conta que estávamos a chegar ao sopé da montanha, ía a manhã já bem adiantada do dia 12 de Julho. Exactamente às 13h30 avistámos Benasques (destino indicado à viatura que nos levou), ponto de chegada da travessia castelhana e ponto de partida da travessia pirenaica, mais conhecida naquelas paragens por “senda pirenaica”.
Por entre ruelas estreitas carregadas de história de uma aldeia encravada no vale, escondidos pelos beirados das casas, fugindo à chuva que começou a cair poucos minutos depois de termos parado o carro, acabamos por nos “aconchegar” numa mesa corrida por entre cañas e cafés solos a olhar para o mapa nos trilhos na zona, esperando ou que a chuva e as nuvens espessas desaparecessem, ou que alguma ideia luminosa nos surgisse.
Apenas alguns aspectos mais descritivos. A nossa intenção era fazer uma parte do emblemático GR 11 (grande rota) que atravessa a cordilheira dos Pirinéus, sensivelmente paralelo à fronteira entre Espanha e França, ligando o Atlântico (no Golfo de Biscaya) e o Mediterrâneo (na Catalunha), parecendo mais uma espinha dorsal vista no seu todo. Actualmente este trilho está perfeitamente detalhado em troços ao longo de toda a sua extensão, sendo possível pernoitar no final de cada etapa.
A parte que nós optámos por fazer está inserida talvez nos dois parques nacionais espanhóis mais famosos dos Pirinéus, no denominado maciço central, sempre em território de Navarra.
Começámos a nossa travessia na Puen de San Chaime (Ponte de S. Jaime), bem pertinho da Catalunha e caminhámos sempre na direcção noroeste até ao Refúgio de Goriz, onde largaríamos o GR 11 para retornar a Benasques.
Assim sendo, ao fim de uma hora de estarmos “alapados”, para além de matarmos a sede, a única coisa de jeito que conseguimos fazer foi um telefonema para o refúgio de montanha mais próximo (Refúgio d’ Estós), por onde prevíamos passar e reservar logo a dormida. Na melhor das hipóteses naquela noite ainda não declararíamos guerra aos “costados”.
Para mim, naquele momento, a montanha já me ensurdecedia incessantemente.
Já tinha batido na torre do relógio as 18h00 há algum tempo quando finalmente largámos o carro, último espaço de conforto que teríamos nos próximos tempos e marchámos de mochilas às costas, alguns com um oleado a proteger da chuva que ainda fustigava. A opção embora não totalmente consentânea, parece-me ter sido a melhor e de facto acabou por se revelar isso mesmo. Embora aquelas três horas de subida, com banho de chuva, depois de cerca de 12 horas de automóvel, com banho de assento tenham sido bastante penosas, o dia seguinte acabou por nos presentear um sol fabuloso e uma previsão de tempo bom para os três dias seguintes. Era só isso que nós precisávamos de ter ouvido para de facto confirmar que embora custoso, valeu a pena fazer aqueles cerca de 12 quilómetros e repousar uma noite já aos quase 2.000 metros de altitude.
13 de Julho, eram cerca das 10 horas (hora local) e já estávamos de mochilas novamente às costas, com uma manhã soalheira a brilhar-nos na face, iniciamos a primeira verdadeira subida com uma previsão de andamento na ordem das 8 horas, e ficarmos já nos limites do Parque Nacional Maladeta- Posets, com outro parque nacional, este Ordesa e Monte Perdido. Mais concretamente na chamada Cabaña Sallena sensivelmente à mesma cota de onde tínhamos partida nessa manhã – a cerca de 1.900 mts de altitude. Mas é claro que não fomos procurar trajecto planos, nem na montanha se encontram 8 horas de caminhada sempre à mesma altitude. Ainda era manhã, e já estávamos a comer um segundo pequeno almoço, aos 2.560 mts de altitude no Puerto de Chistau, também conhecido por Collado d’Estós. Para quem não esteja familiarizado com estes termos, collado, ou puerto é uma zona alta que faz a ligação entre dois cumes. Normalmente é o limite de um vale. Neste caso concreto do vale de rio Estós.
O esforço já tinha sido bastante grande e de facto foi aí quando parei naquele collado que pela primeira vez me deparei com o peso que levava atrás de mim, não às costas, mas na mochila. E nesse momento me perguntei efectivamente até onde conseguiríamos chegar. Ainda só agora estávamos no início da travessia e as montanhas começavam a elevar-se. Não é que fisicamente já me sentisse a fraquejar, ou psicologicamente estivesse abatido, mas confesso que estava apreensivo com o esforço que nos esperava nos dias seguintes. Aquilo não tinha muita comparação com caminhadas de 12 horas, ou 10 horas, que por vezes distraidamente fazíamos no Gerês, apenas para testarmos a capacidade de resistência. Nos Pirinéus, onde neste momento já estávamos, não havia ponto de retorno e à noite esperava-nos uma tenda montada, na melhor das hipóteses, num prado, apenas para nos amortecer a dureza do terreno, e dar tréguas ao corpo.
Bem, mas isto nem é uma história trágico-montanheira com heróis, nem um relato de uma qualquer equipa de sobrevivência. Apenas um grupo de amigos que adoram o contacto com a natureza e precisam de respirar na montanha, qualquer que seja a altitude desta. Foi uma aventura assumida conscientemente por todos e que havia de ser levada até ao fim, apenas porque sim. É a vontade de subir ao topo, mais nada.
Uma paixão, como tantas outras.
Nessa tarde, já adentro, acabámos a almoçar no Refúgio de Biadós, ou Viadós (nome também pelo qual é conhecido e aqui salientado, a pedido de algumas famílias), sentados serenamente no patamar da entrada, com vista privilegiada sobre a face norte de um dos gigantes do parque nacional, o Posets (com 3.369 mts de altitude), ainda vestido de branco e ameaçando os mais afoitos que de mão sobre o sobrolho protegendo a vista do sol e a outra no piolet o observavam à distância de uma cordada.
E foi assim que deixámos o Parque Nacional Maladeta- Posets e entrámos no de Ordesa e Monte Perdido, onde faríamos a maior parte da travessia.
Era cerca das 18h00 já o sol escorregava para detrás dos Montarruegos que alguns de nós, numa vontade inconsciente de refrescar nos enfiámos literalmente debaixo de uma cascata que caía em cachão e se perdia lá em baixo no meio de um bosque de pinheiros. Estava gélida!
E nesse final de tarde já depois da tenda montada, não mais consegui ter um bocado de calor. Houve todavia alguns que aproveitando a hospitalidade da cabana optaram por dormir lá dentro nessa noite, depois de um fogueira acesa.
Resta dizer que no dia seguinte a temperatura nos dois locais era exactamente a mesma e toda a gente, sem excepção, ansiava por uma bebida quente. Pois claro.
Tempestade