PIRINÉUS
Pirinéus Unplugged
2ª parte (dias
Segunda-feira. Nem parecia estarmos no início da semana, tanto mais que ao olhar para fora da tenda, a paisagem que se vislumbrava era imensa! Imensa em tamanho, em beleza, em altura e
A partir deste dia até ao final da caminhada, sempre que saia da tenda sentia uma dor de articulações, especialmente ao nível de tornozelos. Até que a máquina voltasse a estar novamente “operacional” era um ritual de andar para a frente e para trás até pelo menos sentir o mesmo ritmo para caminhar. Mas acho que todos nós, cada um com as suas mazelas, já se iam queixando.
Após um pequeno almoço à pressa, arrumar tudo de novo, redistribuir pesos nas mochilas e dar ao canelo outra vez, passou a ser quase automático.
Após parar mais à frente já com sol a irradiar totalmente, alguns de nós ainda tivemos que fazer algumas lavagens de louça deixadas do dia anterior. Normalmente o cansaço era tanto, e a noite também era um bom argumento para deixar para amanhã o que não se podia fazer hoje.
Após mais um trajecto de cerca de duas horas desta feita por entre pinheiros sobre arribas totalmente verdejantes e intactas, com vista para vales profundos e que terminavam invisivelmente em rios de caudais bem sonoros. Cumes para lá desses vales, de uma tonalidade cinza, facelados e abruptos, aparentemente intransponíveis. lá seguimos a senda bem marcada, sempre a subir…”ligeiramente”. Desta vez o nosso 2º pequeno almoço foi tomado no Collado Urdiceto aos 2.326 mts de altitude, também conhecido pelo Paso d’es Caballo. A fome já era enorme e a sede ainda maior. Estes momentos eram autênticos espaços de suspiros. Tanto mais que a paisagem também ajudava e nos podíamos perder infinitamente em divagações.
Ali num ponto alto, com vista para dois vales perfeitamente distintos delimitando duas bacias hidrográficas, e como se estivéssemos no limite de uma qualquer fronteira. Como se tivéssemos terminado mais uma etapa, mais uma conquista, mais uma página que se virava e agora tudo começava de novo. A paisagem, a luz, o esforço, a vontade e as aspirações, tudo era reiniciado.
Após começarmos a descer pelo vale do Urdiceto, a paisagem era de uma aridez acastanhada, praticamente sem qualquer vegetação. Um solo revestido daquilo que nós chamamos de cascalhão e que nos obriga a um caminho penoso, em descidas íngremes, algumas delas parecendo degraus de pedras solta que nos mantém sempre num estado de semi-travagem, dado o peso das mochilas que nos empurra para a frente.
As descidas são indubitavelmente muito mais desgastantes e dolorosas que as subidas. Não são tanto os músculos que nós esforçamos, mas sim as articulações dos joelhos, e dos tornozelos que vão sempre em constante tensão.
Após cerca de trinta minutos em descida, a paisagem começa novamente a mudar. Os pinheiros são outra vez uma excelente sombra. O rio que corre ao lado, embora ainda não se veja, sente-se no ruído do cachão a frescura que emana. Imperceptivelmente, o trilho transforma-se num estradão que nos levará finalmente até à civilização e ponto de re-abastecimento que tínhamos programado na nossa travessia. Lá em baixo, no limite do vale aos 1.300 mts encontramos a pequena aldeia fronteiriça de Parzan. O caminho foi deveras penoso, não só devido à descida que parecia interminável, com curvas seguidas de mais curvas, quase sempre sem sombras e um sol implacável que a pino dos indicava estar a chegar a hora de almoço.
Após cerca de três horas sempre a descer, praticamente apenas em estradão, alcançamos a estrada nacional e o alcatrão.
De Parzan deu para perceber a confusão de trânsito que ali passa, especialmente automóveis franceses que aproveitando a diferença de preço de combustível faziam fila no posto de abastecimento, enquanto nós de comida na mão e sentados no lancil do passeio observávamos. Recordo que o nome deste pueblo me fez lembrar que poderiam ter vindo daqui os partisanos que guerrilhavam com a falange do generalíssimo, naquela região.
Eu ainda aproveitei para “tomar” um banho no WC do posto e todos nós conseguimos retemperar forças e arrefecer um bocado com uma bebida fresca ao fim de tantas horas, apenas com água de cascatas. Bendita Coca!
De Parzan subimos por uma estrada deserta até Chisaguês, também com tradições ainda marcantes, especialmente na exploração mineira, patente no traçado da aldeia e tipo de arquitectura local. Curiosidades que conseguimos resgatar para a memória, não obstante o sol implacável. Mais subida, desta feita em estradão até praticamente ao limite das nossas forças nesse dia, por baixo do denominado Pico de Pietramula, aos cerca de 1.900 mts de altitude. Ainda antes de largarmos as mochilas fazíamos contas ao desnível acumulado conseguido nesse dia. Cerca 1.100 mts e ainda cerca de 8 horas de andamento, já retirados os tempos de paragem.
Pietramula deparou-se-nos como um autêntico espaço de repouso. Situado num pequeno planalto, com vista sobre todo o vale do Rio Real, até praticamente à estrada nacional de onde tínhamos partido. Impressionante, como daquele ponto se conseguia praticamente observar todo o trajecto que tínhamos feito nesse dia. Era como se o nosso olhar resumisse um dia inteiro de calor, esforço e penosidade. Tanto esforço despendido apenas para conquistar um vale. E o dia anterior já tinha sido praticamente assim e o dia seguinte vislumbrava-se idêntico. Dias consecutivos apenas a transpor vales. E recordei a máxima do Medronho – “ A formiga é pequena, mas atravessa a montanha”.
Nesse final de tarde, além da companhia de umas quantas marmotas que já nos espiavam ainda nós estávamos à procura do local ideal para assentar arraiais, tivemos um privilégio apenas comum a quem aceita despender uns quantos dias no meio do mundo selvagem em plena montanha - o repasto de um bando de abutres sobre a carcaça de uma vaca a poucos metros de nós.
Foi um espectáculo único de se ver e fotografar.
15 de Julho. O dia amanheceu lento. Porque o vale era bastante fechado e tardou até que as tendas estivessem ao alcance dos raios de sol. Ainda aproveitámos para comer e lavar o que tínhamos deixado do dia anterior, até que o calor nos ajudou a arrebitar e começámos novamente a subir. Desta feita até ao Collado de Pietramula, acima dos 2.100 mts de altitude de onde pudemos ver à nossa frente o impressionante Valle de Piñeta. Este seria hoje o nosso trabalho de campo. Conquistar este vale – ao contrário do que possam imaginar, ali não se conquistam montanhas.
Começámos por descer aos Llanos de Estiva, que mais parecia um cenário saído da introdução do filme 2001 Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick, onde apenas eram protagonistas os macacos. Neste llano, quando o alçámos apenas vimos uns rebecos, marmotas e gralhas, que fugiram literalmente perante a nossa presença, deixando aquele território à nossa mercê. Rapidamente descrevendo mais não era do que um plano de pasto, perfeitamente contornado por uma barreira de calcário pontuado por pinheiros, com uma área de cerca de três campos de futebol, apenas com uma saída ao mesmo nível e que descia em direcção ao vale, mais propriamente até aos Llanos de
Novamente aos cerca de 1.400 mts de altitude, e à frente de um almoço frugal, no vale de Piñeta podemos então observar o local onde era nossa intenção pernoitar – acima dos 2.400 mts de altitude e acerca de 7 horas de caminho ainda a pé até lá, já bem no coração do Parque Nacional de Ordesa e a cerca de três horas a pé do Monte Perdido, nosso objectivo no dia seguinte. Ou seja vendo bem a coisa era cerca das 13h00 locais e nesse dia ainda tínhamos mais cerca de 7 horas de caminhada com uma subida de 1ª categoria.
Não sei o que relatar da subida. Mas acho que é bem preferível dar nota que a paisagem por baixo de nós a certa altura (lá pelo meio da tarde, ainda nós estávamos a cerca de 1.900 mts de altitude), era mais uma vez imensa! Novamente era possível observar a tiro de um olhar o local de onde tínhamos partido nessa manhã… frustrante? Nem por isso. As horas que já tínhamos perdido até ali eram demonstrativas da nossa perseverança. Cada um de nós ao seu ritmo foi tentando conquistar cada metro de altura, por entre suspiros, mãos agarradas às pedras para passar ao limite seguinte, parando quando era preciso meter uma dose adicional de ar e ter a certeza que afinal já não faltava tanto como há 5 minutos atrás. Beber mais um bocado de água, tirar uma fotografia, lançar um olhar de memória ao gigantes à nossa frente, no majestoso Valle Piñeta e por volta das 18horas locais estávamos todos sentados a comer um lanche e orgulhosos pelo feito atingido. Para terem uma ideia, em pouco mais de 5 horas, fizemos um desnível de cerca de 1.350 mts, praticamente num trilho a maior parte dele talhado em degrau, até à altitude de
Encontrávamo-nos no inóspito Collado del Anisclo, rodeados novamente de neve e ainda a cerca de 3 horas de marcha do abrigo desse dia – Refúgio de Goriz.
Por entre escarpas, correntes que tivemos que agarrar para subir e descer, por baixo de cascatas, pondo os pés em cima de neveiros, cascalhão, e planaltos totalmente desertos acabámos por atingir já ao ocaso do sol o tão ansiado refúgio. Também aquele cenário mais parecia surrealista. Após uma travessia solitária. O grupo se depara com um autêntico povoado de tendas todas coloridas, e um burburinho de gente em volta, como que festejando o por do sol em plena montanha.
Pouco tempo mais tivemos do que montar as tendas onde ainda conseguimos encontrar algum espaço, e rapidamente, fazer um jantar que nos soube pela vida. Tinha sido um dia fatal! Contámos mais de 14 horas de caminhada.
Creio que nenhum dos presentes no grupo tinha coragem de se queixar de dores e mazelas, não obstante estivéssemos onde queríamos. O esforço tinha compensado. O Monte Perdido do dia seguinte seria nosso!
16 de Julho. A manhã voltou a mostrar-se fria, mas prometia muito sol e calor. Era o dia ideal para subir lá acima e finalmente passar a barreira dos 3 mil metros de altitude.
Havia neve que chegasse, muita e muita neve. Lagos gelados e trilhos perfeitamente acessíveis, apenas com uma pequena mochila de ataque, e mesmo sem o piolet e uns crampons. Resta dizer que a paisagem lá em cima era magnifica. Conseguia-se observar todos os picos três mil das redondezas, percebendo-se que a suavidade plana e acetinada da neve conseguia esbater o abrupto das escarpas. Praticamente todos aqueles cumes tinham um véu de um branco puro e virgem. Mais parecia nunca terem sido trilhados.
Aquele dia terminou alegremente novamente no refúgio. Aclimatar para uns, lavar roupa para outros. Até um chão duro em betão serviu perfeitamente para repousar o corpo, que já pedia clemência.
O dia seguinte seria feito o regresso até Benasque, para a tão “ansiada” subida a outro pico três mil. A coisa estava a correr menos mal do que eu pensava. Percebia-se que o grupo mantinha uma boa coesão e a expectativa mantinha-se elevada. Não podíamos estar em melhor forma, creio eu. E só isto era já meio sucesso.