“Olhou para o mundo em seu redor, como se o enxergasse pela primeira vez. Belo era o mundo! Era variado, era surpreendente e enigmático! Lá, o azul; acolá, o amarelo! O Céu a flutuar e o rio a correr. O mato a eriçar-se e a serra também! Tudo lindo, tudo misterioso e mágico! E no centro disso tudo se achava Siddharta, a caminho de si próprio. Não havia mais aquela multiplicidade absurda, casual, do mundo dos fenómenos, desprezada pelos profundos pensadores brânames, que rejeitam a multiplicidade e esforçam-se por achar a unidade. O sentido e a essência das coisas não se achavam em algum lugar atrás das coisas, senão no seu interior”.
In Siddharta – Herman Hesse
Como é que hei-de chamar a este testemunho?
As ideias ainda correm cá dentro à mesma velocidade com que os quilómetros eram comidos na nossa corrida para o cume da serra.
O Porto e a sua rotina ao ritmo de “canto chão” já tinha ficado para trás. Agora era só o gigante do planalto à nossa espera, e nós a caminhar para lá, tal como os três cavaleiros do apocalipse acompanhados da sua Guinevére (que tal querida Nogueira?)
As conversas no caminho discorriam, alegre e naturalmente. O sentimento de cumplicidade era cada vez maior. A linguagem era a mesma. As sensações, os desejos, naquele momento entre nós os quatro, fazia lembrar quatro caminhos de vida que por alguma razão se uniram por alguns momentos.
A pontualidade foi praticamente alemã. Às 14h30 de sábado lá estávamos nós já equipados, demasiado para dizer a verdade, e que se traduziu em carga a mais, como depois se chegou a perceber... tarde de mais. A subida foi calminha desde o Covão D’Ametade até à Nave de Stº António, ainda por entre pinheiros com ramos pesados de NEVE.
A visitar e pernoitar no Covão D’Ametade, aconselho vivamente no Verão. Aquele sítio mais não é do que um leito suave e paraíso de escaladores de um dos maiores desafios que Portugal Continental tem em termos de escalada – os Cântaros. A vista que se tem sobre o vale glaciar é fantástica! Dá que pensar, o tempo e a paciência milenar que é necessário para suavizar aquele vale.
Do lado oposto temos a Nave de St. António, que faz mais lembrar um planalto alisado pela mão, recortado por pequenos ribeiros, de água que não pára nunca de correr. A vegetação aqui já só é rasteira, e de tonalidades amarelas. Atravessar aquela “mesa” foi apenas o corolário do que nos esperava. Subir do Covão do Ferro até à Torre. São só cerca de 600 mts de desnível, autenticamente conquistados, pela vertente sul.
ÀS 15h45 estávamos a iniciar a subida a partir do Covão do Ferro, com a sua pequena albufeira e último elemento humano que voltamos a ver nesse dia. A partir daí, a concentração de aguentar a subida até ao topo tomou completamente conta de nós. Colocar o pé na pedra certa, ou no degrau de neve já calcado pelo companheiro da frente. Ainda deu para olhar para trás e ver apenas... cinzento chumbo. Eram montes facelados e abruptos, e um céu que já se escondia por detrás de um nevoeiro que descia rapidamente e envolvia suavemente todo o vale. Do sol já não havia imagem, apenas reflexos e recordações.
A visão que ainda alcançávamos incluía também a estrada por baixo, ao longe, desde os Piornos e contornava a Nave, desaparecendo em seguida quase imperceptivelmente, iluminada por uma cobra de luzes, de automóveis “acotovelando-se” com ânsia de alcançar a torre.
Às 16h30 ainda estávamos na penosa subida e a escuridão já tomava conta do ambiente. Aos 1.700 mts de altitude e a cerca de 45 minutos do local de pernoita, o nevoeiro era cada vez mais intenso e cerrado limitando-nos cada vez mais a caminhada. A juntar a este ingrediente, o vento de noroeste vinha misturado com neve miúda que batia no rosto, como se fossem autênticas agulhas. O piso além de rochoso, era cada vez mais branco. Benditas polainas... benditas botas... benditos bastões..., benditos crampons... Bendita Tempestade!
É impressionante, com o nevoeiro no final de tarde, com vento e neve à mistura, à medida que o grupo se começa a partir, conseguir seguir o rasto do grupo à frente torna-se de facto tarefa complicada. Basta que nos desviemos apenas 2 mts para o lado e deixamos imediatamente de ter noção do percurso a seguir. Não só porque deixamos de conseguir ver para além de 20 a 30 mts de distância, mas também porque rapidamente deixamos de conseguir ver o trilho no chão.
Acredito que nesta altura da caminhada para a nossa Guinevére a caminhada já não era só um desafio mais a transpor... Grande espírito de perseverança Nogueira! Na falta de melhor alternativa fomos partindo o nosso grupo UPB em três por forma a conseguir manter o contacto visual com o resto da comitiva, até que um dos companheiros acabou por nos acompanhar com contacto via rádio. Ideia genial, mas que já tardava.
A expectativa de alcançar o local de acampamento acabou por ficar gorada. E assentamos arraiais às 17h20, já praticamente sem luz a cerca de 200 mts da torre aos 1880 mts de altitude. O vento batido com neve dava a sensação de estarmos com temperaturas mais baixas. Afinal estávamos apenas a – 2 graus. Só? Alguém perguntou.
As tendas foram montadas à velocidade que as nossas enregeladas mãos permitiam e conforme o vento nos dava algumas tréguas.
A ementa do grupo UPB nessa noite: café, chá, SOPA e para quem ainda aguentou o 2º prato, massa napolitana! HUMMMM. Só faltou o cacau quente. Frugal? Nem por isso, antes pelo contrário, um excelente repasto e depois de nos reconfortarmos durante 2 horas ou talvez mais - aqui o tempo torna-se impreciso -, dentro de uma tenda que já pingava (literalmente), não pela água que vinha do exterior, mas por causa do vapor de água que não saía do interior, o corpo agradecido queria descansar. As boas noites foram dadas ao tiritrar de dentes e com a última dose de coragem do dia, para enfrentar o vento gélido da noite, que era quase ensurdecedor em condições normais de conforto.
Recordo que antes de adormecer ficou-me suspensa no ar (talvez também congelada) aquela típica pergunta. O que motiva um grupo de pessoas a desinstalar-se do seu meio e vir dormir no alto da montanha no meio da tempestade, cuja única protecção é uma fina camada de tecido seguro por uma corda e uns ferros espetados no chão e um saco cama? Talvez seja isso mesmo... “desinstalar-se” de tudo. Do que se carrega diariamente e que de facto pouca ou nenhuma falta faz. Foi isto que ali, em certa medida, conseguimos “provar” a nós mesmos, cada um à sua medida. Desprender-se do que é supérfluo.
Por volta das 4h30 da manhã o frio era já de tal forma desconfortável que nem os três pares de meias me valiam. À procura do 4º par de meias de lã, apenas encontrei gelo. Estavam geladas e duras... nada feito. A seguir fui à procura da alternativa, o chá feito nessa manhã que ainda tinha no termos quentinho quando tinha pousado a tenda. Mas aquela hora já só tinha Ice tea. Não, não era nada daquilo que eu queria. Moncalvo? Quando foi isso? Já não me lembro de nada...
Às 7h30 da manhã depois de uma noite então “tranquila”, a saída para o exterior da tenda foi mais uma surpresa. O silêncio branco em contraste com o azul forte do céu era soberbo! As tendas, os bastões, tudo estava gelado. Até as cordas das tendas que deviam estar tensas, eram uma linha grossa de neve dura.
Até à torre foram apenas mais 20 minutos debaixo de um sol fantástico. Às 9h30 estávamos a passear quão turistas por um autêntico estardalhaço de automóveis e autocarros, enquanto que o polícia procurava eufórica e desesperadamente manter alguma “ordem” naquilo. A nossa comitiva de mochilas às costas fugia em passo largo em direcção novamente à paz branca.
O que procura tanta gente naquele local? Um centro comercial na torre para ser alternativa ao que têm quase à porta de casa? Terão saudades das filas de trânsito que lhes “alimenta” o quotidiano nas cidades, como se fosse algo que lhes suga o tempo precioso de vida, mas que se teima em manter para onde quer que se vá, porque jã não se sabe viver sem urbanismo? De facto, há razões que a própria razão desconhece. E o homem é o melhor exemplo disso.
De novo o silêncio... branco agora em contraste com um azul forte e frio do céu.
A seguir foi só descer... em cima de neve. Muita neve, macia e seca. As refeições foram-se fazendo à medida que chegávamos a pontos estratégicos. Espinhaço de Cão, onde nos cruzamos com outro grupo no sentido contrário e Vale da Candeeira, este já sem neve. Onde nos cruzamos com o pessoal das paletes... e dos carvalhos cujo objectivo era plantar no numero de mil! Bonito gesto naquela zona que em tempos já teve também muita arborização.
A Serra da Estrela merece. Merece a visita de pessoas que a visitem e a tratem bem. Merece ser reconhecida não só por se tratar da montanha mais alta de Portugal Continental, mas pelas suas características endémicas, morfologia, fauna e flora e que se perde com a actual inconsciência do homem. A sua avidez por interesses mais rentáveis é desmesurada. E acabamos por ter como resultado por exemplo uma saturação das estradas ao maciço central, projectos turísticos megalómanos, apenas para conseguir aumentar o numero de camas, alegadamente em prol da economia local, com mais postos de trabalho e por conseguinte trazer mais turismo para esta zona do interior do país? É isto civilização? É isto planeamento racional das infra-estruturas, interferindo o mínimo possível com o habitat natural que se quer “pseudo” manter?
Grande espírito de companheirismo entre este pequeno grupo do UPB. Águia Real, grande observador, é um excelente companheiro de caminhadas e de uma amizade fiel, como não é comum ver hoje em dia. Zimbro Vermelho, de uma acuidade silenciosa, mas muito fiel. Gosto quando vai comigo atrás. As suas histórias são fantásticas, e da forma tão própria como ele as sabe contar. Nogueira, vergo-me perante a tua força de vontade. Foste tu mesma, com a tua simplicidade e o teu sorriso fácil. A caminhada correu bem porque tu estavas presente. A única mulher do grupo de 18 caminheiros!!
De facto percebe-se que o UPB é feito de gente que corre na mesma direcção e luta por alguma coisa melhor. Este companheirismo está firme e vê-se que o espirito de grupo criou raízes bem fortes.
Tempestade